Quarta maior cidade dos EUA não resolveu a falta de moradia, mas progresso sugere caminho
Michael Kimmelman e Lucy Tompkins
Durante a última década, Houston, a quarta cidade mais populosa dos Estados Unidos, transferiu mais de 25 mil moradores de rua diretamente para casas e apartamentos. A esmagadora maioria continuava com moradia após dois anos. Assim, o número de pessoas consideradas sem-teto na região de Houston foi reduzido em 63% desde 2011, de acordo com os últimos números de autoridades locais. Mesmo a julgar pelas métricas mais modestas registradas em um relatório federal de 2020, Houston fez mais do que o dobro do resto do país na redução dos sem-teto na década anterior.
Dez anos atrás, desabrigados veteranos, categorias que o governo federal rastreia, esperavam 720 dias e tinham de passar por 76 etapas burocráticas para sair da rua para uma moradia permanente com apoio de conselheiros de serviço social. Hoje, o processo simplificado reduziu a espera por moradia para 32 dias.
Ação conjunta
Houston chegou até aqui ao se unir a agências dos chamados condados e convencer dezenas de provedores de serviços locais, corporações e organizações de caridade sem fins lucrativos, que muitas vezes brigam e competem umas com as outras, a remar na mesma direção. Juntos, apostaram na "moradia em primeiro lugar", uma prática que, apoiada por décadas de pesquisa, leva as pessoas mais vulneráveis direto das ruas para apartamentos, e não para abrigos, sem exigir que elas se afastem das drogas ou completem um programa de doze passos ou encontrem Deus ou emprego.
Existem programas de recuperação de dependência e conversão religiosa que conseguem tirar as pessoas das ruas. Mas a prática da "moradia em primeiro lugar" envolve uma lógica diferente: quando você está se afogando, não ajuda se seu socorrista insistir que você aprenda a nadar antes de o levar de volta à praia. Você vai poder resolver seus problemas quando estiver em terra. Ou não. De qualquer forma, você se junta à população mais ampla de pessoas que enfrentam seus demônios debaixo de um teto e a portas fechadas.
"Antes de deixar o cargo, quero que Houston seja a primeira grande cidade a acabar com a falta de moradia crônica", disse Sylvester Turner. No final de janeiro, Turner, que está cumprindo seu último mandato como prefeito, juntou-se aos líderes do condado de Harris na divulgação de um plano de US$ 100 milhões que usaria uma combinação de fundos federais, estaduais e municipais para reduzir o número de pessoas sem-teto pela metade até 2025.
Palavras
Turner escolheu as palavras com cuidado, e é importante analisar a expressão que usou: "falta de moradia crônica" é um termo técnico. Refere-se àquelas pessoas que vivem nas ruas há mais de um ano, ou que foram desabrigadas repetidas vezes, e que têm deficiência mental ou física. Em todo o país, a maioria das pessoas sem-teto não se enquadra nessa categoria restrita. Elas ficam sem-teto por seis semanas ou menos; 40% têm emprego. Para elas, a falta de moradia é uma condição agonizante, mas temporária, que às vezes elas resolvem com ajuda de parentes ou amigos.
Ao mesmo tempo, existem milhares de mães, crianças, adolescentes e jovens adultos que estão em situação de risco e mal alojados. Essas pessoas também estão pobres e desesperadas. Encontrar um lugar para dormir pode ser uma luta diária para elas. O que as separa das ruas talvez seja um pequeno imprevisto. Elas estão sempre na linha de montagem dos desabrigados. Mas não são sem-teto de acordo com a definição burocrática. Não estão dormindo na calçada, nos seus carros ou em abrigos. Houston pode oferecer ajuda a essas pessoas, mas Turner não está prometendo acabar com a precariedade de suas vidas.
"Não estamos aqui para resolver a pobreza. Não estamos aqui para resolver o problema da habitação a preços acessíveis", disse Ana Rausch, vice-presidente da Coalizão para os Sem-teto de Houston, acrescentando: "Pense no sistema de sem-teto dos Estados Unidos como uma triagem de pronto-socorro. O que Houston conseguiu foi avançar o suficiente no enfrentamento do desafio para começarmos a pensar na sala de espera dos sem-teto".
Mas acampamentos como o de uma passagem subterrânea, onde Rausch acompanhava a remoção de moradores em barracas de lona e de papelão, revelam décadas de decisões calamitosas de planejadores, políticos e autoridades de saúde e habitação.
Um em cada catorze americanos sofre com a falta de moradia em algum momento da vida - e esta população é desproporcionalmente negra. Erradicar a falta de moradia exigiria combater o racismo estrutural e reconstituir os sistemas de saúde mental, de apoio familiar e de abuso de substâncias do país, além de aumentar os salários, expandir o programa federal de vales-habitacionais e construir milhões de casas subsidiadas.
Direitos
O objetivo de Houston é diferente do de outras cidades que enfrentam o problema: transformar os sem-teto em casos apenas "raros e breves", para citar Rosanne Haggerty, defensora dos direitos de habitação. Cinco estados - Califórnia, Nova York, Flórida, Washington e Texas - agora respondem por 57% dos sem-teto. O quadro é pior nas grandes cidades, onde a habitação a preços acessíveis é escassa, os preconceituosos têm poder e o enorme abismo entre a renda média e o custo da habitação cresce. Houston se encaixa nessa descrição. A escala de seus problemas não se aproxima do que vem acontecendo em São Francisco, Nova York ou Los Angeles. Mas o progresso que a cidade fez é instrutivo e replicável. Constitui um sucesso frágil, mas convincente.
No meio da tarde daquele dia de julho, a equipe de Rausch transferiu as pessoas que moravam no acampamento para suas novas residências. Entre as pessoas realocadas estava uma mulher tímida de 39 anos chamada Terri Harris. Ela tinha dado pulos de alegria com a perspectiva de um teto quando os trabalhadores comunitários se aproximaram dela no acampamento. Ela estava cansada de viver nas ruas e desesperada para se reencontrar com sua filha de três anos, Blesit, a quem tivera de deixar aos cuidados da irmã. Dois agentes comunitários colocaram Harris numa van, assim como seus utensílios domésticos e uma bíblia. Harris parecia nervosa. No final da viagem havia um apartamento de um quarto à sua espera.
Cenário
Meio século atrás, os EUA inventaram a falta de moradia moderna. O cenário foi montado com o fechamento de hospitais psiquiátricos após escândalos de abuso e a introdução de medicamentos psicotrópicos. Depois, as cidades começaram a oferecer incentivos fiscais a proprietários de casas de férias e hotéis para converter as propriedades em imóveis para aluguel a preços de mercado. Só em Nova York, perderam-se mais de 100 mil unidades populares que abrigavam dependentes químicos, idosos, ex-presidiários e doentes mentais.
Durante a década de 1980, recessões consecutivas, combinadas com os cortes federais do governo Reagan em programas de habitação de baixa renda e assistência à pobreza, forçaram um grande número de famílias a morarem nas ruas. Ao mesmo tempo, empregos industriais bem pagos se transferiram para o exterior e os operários se viram obrigados a empunhar vassouras no McDonald's. Uma crise do petróleo elevou os preços dos combustíveis, o que aumentou os aluguéis. E uma nova geração gentrificada começou a descobrir os prazeres arquitetônicos dos bairros históricos. Além de tudo isso, as reformas tributárias da era Reagan encorajaram a construção de casas unifamiliares de alto padrão, mas não de imóveis de aluguel multifamiliares e acessíveis. Foram construídas 515 mil casas multifamiliares em 1985, mas apenas 140 mil em 1991. O mercado de moradias populares se transformou em um jogo das cadeiras para os americanos de baixa renda: alguém sempre perdia. Uma década atrás, Houston tinha um dos maiores índices de sem-teto per capita do país. Desperdiçava milhões, além do tempo dos policiais prendendo pessoas sem-teto por intoxicação.
A mudança começou em 2009 com o Hearth Act, que estipulava a política de "moradia em primeiro lugar" e o trabalho com organizações de sem-teto. Depois, o governo Obama ofereceu dinheiro e experiência para dez cidades. Houston entre elas. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU