Correspondente da DW Mathias Bölinger está na Ucrânia desde o início da invasão russa. Ele relata como Kiev convive com momentos de desespero total, pessoas levando seus cães para passear e supermercados cheios.No bairro hipster Podil, em Kiev, há uma placa na rua oferecendo vinho quente, café e chá. A venda de álcool é proibida pela lei marcial, mas um homem ainda está vendendo café e chá por meio de uma janela do porão. Ficamos surpresos ao ver que ele está trabalhando.
"Que legal que você ainda está aqui!", dizemos. "Claro que estou", responde ele, de forma indiferente. Mas o seu ponto de venda é uma grande exceção. Embora a capital ucraniana estivesse cheia de lugares assim antes da guerra, a maioria está agora fechado. Atrás de sua janela, o homem é como uma relíquia do passado.
Algo que caracteriza esta guerra é a estranha convergência de coisas que não se encaixam: silêncio e violência, vida cotidiana e medo. Quando as primeiras bombas russas caíram na última semana de fevereiro, eu estava no leste do país, em Donbass, onde os combates duram oito anos. A violência já havia escalado antes da invasão que o presidente russo Vladimir Putin estava planejando. Aldeias que haviam permanecido tranquilas por anos, apesar do conflito, estavam de repente sendo bombardeadas. Muitos moradores locais sentiam uma sensação de desgraça iminente.
"A frente de combate passou por nossa aldeia duas vezes, mas nunca tínhamos vivido nada assim", disse Olena Makarenko, assistente social na aldeia de Vrubivka. Duas bombas caíram não muito longe de sua casa. Um homem bêbado na praça principal de Kramatorsk profetizou que logo haveria uma guerra real, como se já não houvesse combates contínuos há anos. Outros descartaram o perigo: "O que pode acontecer? Há muito tempo estamos acostumamos com a guerra", disse um político local.
"Começou"
No dia em que a Rússia invadiu, meu colega Nick Conolly estava no trem noturno de Kiev, vindo para me substituir. Eu tinha uma passagem para o trem da tarde, de volta para a capital. Nick me ligou no meio da noite: "Começou", disse ele.
Como estávamos preocupados que as estações de trem pudessem se tornar alvos, decidimos que ele deveria descer do trem o mais rápido possível. Ele desceu na pequena cidade de Sakhnovshchyna, enquanto nosso operador de câmera Zhenya Shylko e eu entramos no carro e partimos para pegá-lo.
Quando chegamos, as pessoas pareciam inabaladas pelas notícias. Estavam se preparando calmamente para o que poderia vir, esperando pacientemente em longas filas na frente dos caixas eletrônicos, comprando mantimentos nas lojas locais. Havia filas de carros nos postos de gasolina.
"Pegue alguma comida, você não sabe quando vai conseguir novamente", disse-nos a vendedora da padaria. Ela tinha acabado de voltar de visitar sua filha em Viena. Partimos para a capital ucraniana com três sacolas de tortas.
Raras vezes eu havia feito uma viagem tão idílica pelo país. As pessoas estavam conversando nas aldeias e havia nuvens fofas no céu, ensolarado após dias de tempo cinzento. Mas, de tempos em tempos, podíamos ver rolos de fumaça no horizonte.
Mercados por mais quanto tempo?
Agora, o impacto da guerra é visível em toda parte, e Kiev parece uma cidade fantasma. Assim como os cafés e bancas, quase todas as lojas fecharam, exceto aquelas que vendem itens essenciais. Há barreiras de concreto nas estradas e cruzamentos, e obstáculos antitanque feitos de vigas de aço cruzadas em frente aos postos de controle, onde as pessoas precisam se identificar. Segundo o governo, cerca de metade dos moradores da capital deve ter ido embora. Aqueles que ficaram não saem na rua, a não ser para fazer compras ou levar o cachorro para passear.
Apesar disso, em alguns lugares o comércio segue como sempre. Os supermercados ainda estão cheios, e apenas bebidas alcoólicas estão em falta. Em uma delicatessen chique que era popular entre os moradores ricos de Kiev antes da guerra, ainda é possível comprar presunto espanhol cortado na hora, e lagostas vivas nadam em um aquário. Elas são provavelmente relíquias de antes da guerra.
Lutando pela própria vida
A 20 quilômetros de distância está Irpin, um subúrbio onde há dias as pessoas estão escondidas em porões, muitas delas tentando descobrir se devem tentar fugir quando nenhum bombardeio pode ser ouvido. Foi lá que uma mulher e seus dois filhos foram mortos há alguns dias. Eles quase haviam conseguido fugir quando foram atingidos por uma bomba russa. A imagem de seus corpos entre suas malas viralizou. Chegamos alguns dias depois, com vários outros jornalistas, facilmente reconhecíveis na multidão de pessoas que tentam fugir, devido aos seus coletes e capacetes à prova de balas.
Irpin era popular entre a classe média urbana, para a qual o trânsito e os preços de imóveis em Kiev tinham se tornado excessivos. Eles se mudaram para edifícios de apartamentos novos e coloridos, que não eram baratos, mas eram mais baratos do que no centro. Um metro quadrado custava cerca de mil euros (R$ 5,5 mil). Agora, a fumaça sobe por trás dos edifícios, e os tiros podem ser ouvidos à distância, enquanto dezenas de pessoas se movimentam através de tábuas de madeira para atravessar o rio. A ponte foi destruída para retardar o avanço russo. Este é um dos "corredores humanitários" para uma passagem segura de civis.
Hoje, o cessar-fogo está em vigor. Uma mulher na casa dos 30 anos chamada Daria, que partiu de manhã cedo com seu pai de um vilarejo a dezenas de quilômetros de distância, nos conta sobre o equipamento militar danificado e os cadáveres que ela viu. Ela diz que eles conseguiram entrar em um dos ônibus amarelos da cidade que pegam as pessoas assim que eles chegam ao território controlado pela Ucrânia. "As estradas estão destruídas. Foi difícil chegar até aqui. É terrível".
Ela diz que passou duas semanas no porão antes de se atrever a fugir. Ela nos diz que soldados russos apontaram uma arma para sua cabeça. E que confiscaram os telefones das pessoas e saquearam apartamentos. Agora que ela chegou aqui, ela está um pouco menos assustada, capaz de secar os olhos e acariciar seu gato, que trouxe com ela em uma sacola de compras. Ela está prestes a seguir sua viagem no ônibus amarelo para encontrar sua filha, que mora em outra parte da cidade, em um dos bairros onde as pessoas ainda podem fazer compras em supermercados, enquanto se perguntam se a guerra também chegará a eles em breve.