Sobe e desce do dólar e da bolsa diante das declarações e primeiros anúncios do presidente levanta discussão sobre o que move decisões dos agentes econômicos
Camilla Veras Mota
No dia 10 de novembro, em sua primeira visita à sede da transição de governo, Luiz Inácio Lula da Silva falou pela primeira vez sobre a condução da economia em seu terceiro mandato.
De forma vaga, ele criticou a ideia de disciplina fiscal: "Por que as pessoas são obrigadas a sofrer para garantir a tal da responsabilidade fiscal deste país? Por que toda hora falam que é preciso cortar gastos, é preciso fazer superávit, é preciso cumprir teto de gastos?".
"Vamos mudar alguns conceitos, muitas coisas consideradas como gasto temos que passar a considerar investimento", concluiu.
Foi o suficiente para derrubar a bolsa e fazer o dólar subir. Depois de cair para algo próximo de R$ 5 após o segundo turno, a moeda americana registrou alta de 4,1% naquele dia, cotada a R$ 5,39.
Uma semana depois, na Conferência do Clima da ONU, Lula falou sobre a reação com um comentário que mais uma vez desagradou o mercado: "Você tenta desmontar tudo aquilo que faz parte do social e não tira um centavo do sistema financeiro. Se eu falar isso, vai cair a bolsa, o dólar vai aumentar? Paciência".
No primeiro dia útil de 2023, os primeiros anúncios do novo governo também foram mal recebidos. Na segunda (2/1), o Ibovespa, principal índice da bolsa brasileira, fechou em queda de 3% e o dólar bateu R$ 5,35, com alta de 1,5%.
O sobe e desce nos preços de ativos brasileiros nos dois meses de transição levou muita gente a se perguntar se o mercado financeiro exagera no pessimismo com Lula — especialmente porque o antecessor, Jair Bolsonaro, furou o teto de gastos em R$ 795 bilhões no decorrer dos últimos quatro anos.
A resposta — que não se limita a um simples sim ou não — passa pela discussão sobre as engrenagens que movimentam o mercado financeiro e pela maneira como são construídas as expectativas que norteiam os investidores.
A BBC News Brasil conversou sobre esses temas com quatro economistas.
O que move o mercado
De forma geral, a agenda do mercado financeiro costuma estar alinhada com a de políticos de centro e de direita: maior controle sobre o gasto público e menor participação do Estado na economia.
Mas não são as ideologias o substrato por trás das decisões que formam os preços, diz Filipe Campante, Bloomberg Distinguished Associate Professor na Universidade Johns Hopkins, nos Estados Unidos.
"Um mercado com tamanho e volume como o de títulos da dívida, de câmbio, é uma agregação de inúmeras decisões que estão sendo tomadas basicamente com o intuito de ganhar dinheiro. Todos esses indivíduos têm seus vieses, seus interesses, mas, individualmente, eles não estão formando preço."
A ideia é que, sozinhos, os investidores não conseguem mover o dólar para cima ou para baixo, por exemplo. Assim, o principal motor por trás de suas decisões é essencialmente obter o máximo possível de retorno dentro de um determinado perfil de risco.
Formação das expectativas
A questão é que muitas dessas decisões estão baseadas em expectativas, que se constroem, por sua vez, sobre previsões para o futuro (sobre o cenário internacional, o preço de commodities, a inflação, o PIB…) que levam em consideração uma miríade de fatores — e que podem, no fim das contas, estar erradas ou certas.
Nesse sentido, Robin Brooks, economista-chefe do Instituto de Finanças Internacionais (IIF, na sigla em inglês), acredita que os brasileiros são sistematicamente mais pessimistas do que a média dos agentes econômicos.
"Quando conversamos com clientes e investidores brasileiros, metade do tempo eles costumam ser muito negativos — e estão mais ainda agora", disse ele, que falou à BBC News Brasil poucos dias antes da posse.
No caso específico de Lula, a ideia geral é de que o cenário em que o ex-presidente inicia o terceiro mandato é bastante diferente do que ele encontrou em 2003: em vez do boom de commodities que permitiu a expansão do gasto social, em 2023 o mundo caminha para uma recessão com inflação alta e preços elevados de combustíveis. Se Lula tentar seguir o mesmo roteiro do passado, a dívida pública pode sair do controle, com consequências desastrosas para a economia.
"Eu consigo entender porque as pessoas se preocupam com isso, mas [para chegar nesse ponto] é preciso extrapolar para frente a tomada de muitas decisões equivocadas", comenta.
Ele acrescenta que o nível da dívida pública brasileira, na casa dos 75% do Produto Interno Bruto (PIB), é maior do que o observado entre mercados emergentes, mas ainda bastante inferior ao de economias do G10 como o Reino Unido, por exemplo, que chegou a 100% do PIB neste ano.
"Acho que o Brasil tem, sim, algum espaço fiscal. O cenário para as contas externas é favorável. Então a pergunta é o quanto um novo governo Lula vai explorar isso — e se vai acabar indo longe demais."
Parte dos analistas, contudo, não acha que o Brasil disponha de espaço fiscal para crescer os gastos, e viram na nomeação de Fernando Haddad para o Ministério da Fazenda e de Aloizio Mercadante para o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) — duas indicações políticas, e não técnicas — uma sinalização de que o foco do governo não será diminuir ou melhorar a qualidade do gasto público.
Em um relatório recente, o economista Marcos Casarin, da Oxford Economics, avalia que os sinais enviados por Lula indicam uma reversão da política econômica atual, com flexibilização do teto de gastos e perda de autonomia de bancos e empresas estatais.
Ele cita, nesse sentido, a mudança a toque de caixa da Lei das Estatais, que reduziu de três anos para 30 dias o período de quarentena para que políticos e dirigentes partidários possam ocupar cargos em estatais e agências reguladoras — algo que, na prática, abriu espaço para indicações políticas nessas organizações.
O novo cenário o levou a reduzir para zero a projeção para o PIB do Brasil no próximo ano. Para efeito de comparação, o IIF estima crescimento de 1,8% para o mesmo indicador — a diferença ilustra um pouco como as expectativas calibram a formação das estimativas para os indicadores econômicos.
Sobre a postura do mercado em relação ao antecessor de Lula, Jair Bolsonaro, Brooks avalia que os investidores brasileiros reagiram, sim, à deterioração do cenário fiscal sob o agora ex-presidente, um pessimismo que se manifestou na trajetória de aumento do dólar, por exemplo.
"Em 2021, eram os investidores brasileiros que estavam vendendo [suas posições] mais intensamente — não eram os estrangeiros. Lembra quando o dólar quase bateu R$ 6? Isso foi reflexo de um movimento de venda por parte dos brasileiros, fruto de um pessimismo em relação à pandemia e à forma como o combate a ela estava sendo conduzido."
O economista-chefe para mercados emergentes da Capital Economics, William Jackson, cita o mesmo período quando questionado pela reportagem sobre uma possível condescendência dos mercados em relação ao ex-presidente.
"Junho, julho de 2021, a percepção sobre Bolsonaro nos mercados certamente piorou."
Ele compara o cenário daquele momento com o de 2019, quando Bolsonaro assumiu e, alguns meses depois, o Brasil aprovou a Reforma da Previdência que tinha começado a tramitar no governo de Michel Temer.
"As perspectivas eram positivas, havia uma agenda que abordava alguns dos principais problemas do país, com reformas — mas a pandemia mudou tudo."
"Nem lembro quantas vezes pensei que a reforma tributária e administrativa seriam finalmente pautadas…"
Na visão do economista, o pacote de enfrentamento à pandemia, mais especificamente o programa Renda Brasil (que depois se tornaria Auxílio Brasil), mostrou a Bolsonaro que ele poderia tentar aumentar sua popularidade turbinando o gasto público, e que havia caminhos para contornar o teto de gastos que limitava as despesas do governo.
"Acho que na segunda metade de 2021 a gente pode observar uma reação bastante ruim do mercado financeiro brasileiro a essas políticas."
Nesse sentido, Filipe Campante avalia que a reação talvez não tenha sido pior porque houve uma interpretação de que o aumento dos gastos sociais era uma medida "claramente eleitoreira".
Na hora em que fosse preciso cortar, ele acrescenta, a gestão Paulo Guedes "sairia cortando tudo radicalmente", como fez em outros momentos — o que, se não é algo sustentável do ponto de vista da gestão de políticas públicas, segura o aumento da dívida pública e agrada os investidores.
Para Campante, ainda que as movimentações do mercado se baseiem em premissas que não necessariamente estejam corretas, é importante prestar atenção às informações contidas no sobe e desce de preços porque, no fim do dia, tudo isso acaba tendo desdobramentos na economia real.
"Se o dólar sobe, ele vai ter impacto na inflação… Os preços afetam o ambiente no qual o governo toma decisões."
A nova equipe econômica
Martín Castellano, economista-chefe para América Latina do IIF, afirma que os anúncios sobre a equipe econômica que passa a compor o novo governo e os eventos dos últimos dias antes da posse trouxeram "boas e más notícias".
A indicação de Haddad e Mercadante frustrou as expectativas daqueles que esperavam nomes técnicos para o primeiro escalão.
Por outro lado, figuras menos ligadas à política e mais ao mercado começam a aparecer em outras posições. O número dois de Haddad, por exemplo, é Gabriel Galípolo, que presidia o banco Fator e agora assume a secretaria-executiva do Ministério da Fazenda. Marcos Barbosa Pinto, por sua vez, que estará à frente da Secretaria de Reformas, foi sócio de Armínio Fraga na Gávea Investimentos.
Também entre os sinais positivos, Castellano cita o possível contraponto do Congresso ao Executivo, como já aconteceu na tramitação da PEC da Transição: após passar pelo Senado e pela Câmara, o valor para ampliação do teto de gastos caiu de R$ 198 bilhões (a proposta inicial do governo) para R$ 145 bilhões. A duração também foi reduzida, de quatro anos para um ano.
William Jackson, da Capital Economics, também avalia que o Congresso pode acabar moderando algumas das propostas do Executivo e, por consequência, desacelerar o ritmo de aumento de gastos.
Entre os possíveis pontos positivos da nova gestão, ele coloca a política ambiental e de relações exteriores, que podem trazer benefícios ao Brasil.
Em sua visão, a demora do então presidente eleito para anunciar um ministro da Fazenda, o que só ocorreu em 9 de dezembro, e a ausência de informações mais concretas sobre a política econômica durante a transição deixaram os investidores sem uma âncora para suas expectativas. Isso pode ter contribuído para a volatilidade dos preços observada nos mercados nos últimos dois meses, diz ele.
"Acho que aquela ideia de que Lula seria mais pragmático que circulou nos primeiros dias após a vitória pode ter sido exagerada", acrescenta.
Para o economista, o primeiro governo Lula teve esse perfil em grande medida porque as condições financeiras na época permitiram — um cenário que não se repete hoje.
Além disso, ele complementa, em 2003 Lula teve de convergir mais para o centro para conter os efeitos negativos que as incertezas sobre seu governo poderiam gerar. Com a alta significativa do dólar durante a disputa eleitoral, ele decidiu agir rápido para comunicar que a intenção não era implodir o modelo econômico que tinha vigorado no país até então, mas reformá-lo.
Robin Brooks, que é conhecido pelas estimativas geralmente mais otimistas que a média sobre o Brasil, recomenda ao governo eleito observar em alguma medida o que pedem os mercados, com um pouco de "ortodoxia", e os frutos virão com aumento dos fluxos de capital que vão melhorar as condições financeiras e permitir que o país cresça mais.
"Eu sou um pouco filosófico sobre essas negociações fiscais...é um governo novo, que quer deixar sua marca, mas continuo esperançoso. No fim, um grande tema que eu acho que os mercados passaram a focar neste ano foi a democracia. E estamos tendo uma transição pacífica de governo, depois de uma eleição bem apertada. Isso é fundamentalmente positivo."
Entre as declarações e ações do novo governo que repercutiram de forma negativa nos últimos dias estão a menção de Lula ao teto de gastos em seu discurso de posse — o presidente chamou o mecanismo de "estupidez" e disse que ele seria revogado — e o anúncio na segunda (2/1) de que a isenção de impostos federais sobre os combustíveis seria prorrogada. Também foi mal recebida a determinação do novo presidente de revogar os processos de privatização de oito estatais, entre elas os Correios.