Associações de oito bairros têm protestado contra maior percepção de ruído emitido por aviões. Ajuste, que afeta principalmente as decolagens, possibilita mais viagens
Ítalo Lo Re
Ao acordar na manhã de 1º de janeiro, o publicitário Walter Costa, de 58 anos, notou que havia algo diferente. Dirigiu-se, então, até uma das janelas do apartamento de 5º andar onde mora, em um prédio na Vila Nova Conceição, zona sul paulistana, e observou mais aviões passando por perto do Parque Ibirapuera do que antes. "Imaginei que poderia ser por conta de alguma obra no aeroporto, mas os voos não pararam nos dias seguintes", disse ele, que passou a ter dificuldade para dormir e fazer home office.
Após pesquisar mais a fundo, Walter descobriu que um novo projeto do Departamento de Controle do Espaço Aéreo (Decea) alterou as rotas de voo do Aeroporto de Congonhas, que está em vias de ser concedido à iniciativa privada. As mudanças começaram em maio do ano passado e, com a retomada gradativa de viagens após o pior período da pandemia de covid-19, passaram a ser sentidas em maior intensidade a partir de janeiro deste ano. As reclamações por ruído nos arredores do aeroporto feitas à Infraero, órgão que administra os aeroportos, foram de 13, nos cinco últimos meses de 2021, para 816, de janeiro a maio - alta de 6.176%. Por outro lado, o Decea defende que o ruído geral diminuiu 15,18%, mas não especifica se houve aumento em algumas regiões.
A mudança das rotas de avião foi implementada por meio do projeto TMA-SP Neo. Conforme o Decea, órgão subordinado à Força Aérea Brasileira, o objetivo foi "aprimorar a eficiência na gerência do espaço aéreo para acomodação da demanda atual e a projetada para os próximos dez anos". Na prática, o projeto, que também inclui os aeroportos de Guarulhos, Campinas e São José dos Campos, ramificou as rotas dos aviões - principalmente durante o procedimento de decolagem - para possibilitar mais viagens.
Com a implementação, o Decea informou que as aeronaves passaram a atingir de forma antecipada o chamado nível de cruzeiro, quando o avião consome menos combustível, e disse ainda que, com isso, houve "redução na emissão de CO2 (gás carbônico) e nos gastos com combustíveis, além da dispersão das curvas de ruído". "Este fato é comprovado pela administradora do Aeroporto de Congonhas ao emitir relatório atestando a redução em 15,18% nas curvas de ruído com as novas rotas", afirmou o órgão.
A alteração, porém, tem desagradado moradores de bairros que antes não eram tão afetados pelos voos. "Estão quebrando um equilíbrio social, econômico e imobiliário de 80 anos da cidade de São Paulo com o aeroporto", disse Walter. O publicitário defendeu que não se pode adotar esse tipo de mudança sem amplo diálogo da Prefeitura e a população afetada com os órgãos de aviação, como Decea, Infraero e Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) - esta última, a responsável por regular e fiscalizar o ruído aeronáutico.
Morador do mesmo endereço há 30 anos, Walter teve de investir R$ 8 mil em isolamento acústico das janelas do apartamento onde vive para minimizar os efeitos da mudança. "Só assim consegui voltar a trabalhar", disse. Segundo representantes de associações de bairros afetados, como Moema e Jardim Lusitânia, houve alta na procura de moradores para fazer reclamações sobre ruído de avião e piora considerável na qualidade de vida em locais que antes não estavam sob a rota dos voos e que sequer previam que isso poderia ocorrer.
Eles associam a situação às mudanças feitas pelo Decea. Já o órgão federal, embora não especifique se houve alta de ruído em determinadas regiões, defende que o saldo geral da nova operação tem sido positivo. "As curvas após a decolagem são realizadas por performance da aeronave, ou seja, quanto maior a razão de subida da aeronave, antes ela iniciará a curva. Esse procedimento provoca a dispersão de ruído e é o recomendado internacionalmente para aplicação em um aeroporto com o objetivo de reduzir o impacto do mesmo nas populações vizinhas."
Moradores se unem contra mudança de rotas de voos em Congonhas
Representantes de entidades de oito bairros se uniram nos últimos meses para pressionar os órgãos públicos a rever a mudança de rotas no Aeroporto de Congonhas ou mesmo a tomar ações para diminuir os impactos nos locais afetados, como instalar barreiras contra ruído no sítio aeroportuário e criar um fundo para auxiliar no isolamento acústico das casas e prédios afetados.
O grupo se diz ainda preocupado com os impactos ambientais e relata que os aviões têm passado mais próximos de áreas verdes, como o Parque Ibirapuera. "Nós somos a favor da concessão, que o desenvolvimento da cidade aconteça, mas de uma forma mais amigável com a população", explicou o presidente da Associação dos Moradores e Amigos do Jardim Lusitânia (Sojal), Nelson Cury, de 65 anos.
A avaliação é compartilhada por membros de associações de bairros como Campo Belo, Vila Mariana, Jardins e até Paraíso, que não fica tão próximo assim do aeroporto. Presidente da Associação Viva Paraíso, o psicólogo Marcelo Torres, de 69 anos, explica que desde o fim do ano passado começou a haver um número significativo de moradores insatisfeitos com relação ao barulho de aeronaves no espaço aéreo do Paraíso. "Aqui não era rota e nunca foi, mas passou a ser."
"Alguns voos saem de Congonhas, passam próximo do Parque Ibirapuera e vem pegando altura no Paraíso. E é bem grande o ruído", complementou. Diante disso, Marcelo explicou que se aproximou de representantes de outras entidades para unificar as queixas - o grupo já participou de reuniões com órgãos de aviação civil e de audiências públicas na Câmara Municipal e na Assembleia Legislativa de São Paulo. Marcelo reclama, porém, que a mobilização ainda tem gerado pouco efeito prático.
À frente da Associação Viva Moema, a empresária Simone Boacnin, de 55 anos, reforça que o documento que possibilitou a alteração das rotas de voo em Congonhas foi um PEZR (Plano Específico de Zoneamento de Ruído) elaborado em 2019 pela Infraero e aprovado posteriormente pela Anac. Entre outros pontos, o documento alterou as prerrogativas para emissão de ruídos em algumas localidades da capital paulista.
Conforme o novo plano, "além das alterações dos limites territoriais das Curvas de Ruído em relação ao PEZR anterior, observa-se que mudanças significativas ocorreram nas restrições ao uso do solo". Anteriormente, edificações residenciais, educacionais e de serviços de saúde e igrejas, além de outros espaços, eram proibidas em áreas de 65 decibéis (dB) ou mais, embora sujeitas a eventual liberação federal.
"De acordo com o novo PEZR, esses usos estão autorizados, desde que assegurado o necessário tratamento acústico nas edificações, em conformidade com a exigência específica em cada Área de Ruído Aeroportuário", afirma o documento. A irritação dos ouvidos humanos aumenta de forma considerável a partir dos 60 dB, com os latidos de um cachorro, por exemplo. Na época da mudança, a Prefeitura de São Paulo não respondeu aos questionamentos dos órgãos federais a tempo, o que não impediu a publicação do novo plano.
"Ficamos sabendo só depois do que aconteceu, a gente acordou com o barulho na nossa cabeça", disse Simone, ressaltando que não houve medições específicas em regiões mais populosas, mas apenas por modelo computacional. Para a empresária, como a mudança das rotas foi feita em um momento em que os bairros já estão estabelecidos, o prejuízo ficou todo para prédios, casas, escolas e hospitais antes não afetados. "O que a gente quer é que haja um equilíbrio entre o interesse econômico e a população."
Decea diz não ser possível desenhar rotas sobre áreas desabitadas
O Decea argumentou que, "considerando que o Aeroporto de Congonhas se situa em área densamente povoada, não é possível desenhar rotas sobre áreas desabitadas". Nesses casos, o órgão afirmou aplicar técnicas de redução de ruído previstas em regulamentos da Organização Internacional da Aviação Civil para dispersar o ruído em áreas densamente povoadas e mitigar o impacto nas populações atingidas.
"O que pode ter diminuído foi a concentração do ruído em rotas antes já estabelecidas, já que foi espalhado para outros locais", disse Simone. Ela defende que o cálculo final tem pouco peso quando a rotina de bairros antes fora de rota passam a ser afetados de forma repentina. "A gente até brinca que democratizaram o ruído, espalharam por cima de toda a cidade de São Paulo, por isso que está tendo tanta reclamação."
Dados da Infraero apontam que somente em junho deste ano foram feitas 321 reclamações de ruído nos arredores do aeroporto. Para se ter um parâmetro, entre maio de 2020 e abril de 2021 - ou seja, durante o período de um ano - foram 37 queixas. Os números podem ter tido influência da queda de voos durante o pior período da pandemia de covid-19, mas representantes de bairros relatam que os ruídos aumentaram mesmo na comparação com 2019. Questionada pelo Estadão, a Infraero não disponibilizou registros de antes de 2020.
A Anac informou, em nota, que o Aeroporto de Congonhas possui um PEZR "devidamente registrado" na agência e que o documento "independe de eventuais respostas da Prefeitura de São Paulo para algum órgão federal". "O que se busca são ações de compatibilização do uso do solo com o município abrangido pelas curvas de ruído, bem como com a comunidade do entorno", afirmou. "Como ocorreram alterações em rotas e procedimentos de pouso e decolagem em Congonhas, devido ao Projeto TMA-SP Neo, a Infraero está elaborando um novo PEZR do aeroporto", acrescentou. Não foi especificado prazo.
'Não é espalhar o ruído que vai resolver', diz presidente de entidade
Em locais antes já muito afetados pelos ruídos, como o Jabaquara, a percepção é que a situação mudou pouco após a alteração de rotas dos aviões, mas há preocupação com a perspectiva que a medida traz. Como mostrou o Estadão, a Infraero quer expandir os voos no Aeroporto de Congonhas até mesmo antes da concessão, cujo leilão está previsto para 18 de agosto. A medida adicionaria de 3 a 4 movimentos por hora no terminal, que hoje opera com 32 a 33 pousos e decolagens por hora na aviação comercial. Os investimentos previstos no projeto de concessão abrem caminho para esse número chegar a 44.
Presidente da Associação de Moradores do Entorno do Aeroporto (AMEA) desde 2008, o aposentado Edwaldo Sarmento, de 70 anos, disse se preocupar com a situação, fator decisivo para que tenha se juntado a outras entidades. "Entendemos que deve haver alguma solução intermediária. Não é espalhar o ruído que vai resolver. Se querem aumentar o fluxo de voos no futuro, eles têm de preparar a cidade para essa questão", disse ele, que é morador do Jabaquara.
Caso isso não seja feito, Edwaldo acredita que o cenário tende a piorar em diferentes bairros, já que todas as rotas de decolagem, sejam novas ou antigas, podem passar a ter mais viagens após a concessão do aeroporto. Por consequência, vão emitir mais ruídos. "Não acredito que vão voltar atrás na mudança, mas bato firme na questão da mitigação."
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A Prefeitura de São Paulo informou, em nota, que um grupo de trabalho foi constituído para analisar os aspectos técnicos sobre a regulamentação do zoneamento de ruído aeroportuário e sua interface com a legislação municipal. Desde que as rotas dos voos foram alteradas, a Controladoria Geral do Município registrou duas reclamações na Ouvidoria Geral do Município. "A CODUSP (Coordenadoria de Defesa do Usuário do Serviço Público) aguarda um levantamento de informações técnicas das pastas envolvidas no processo para dar continuidade numa possível mediação de conflitos."
Procurada, a Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb) informou estar "analisando os impactos dos níveis de ruído no entorno do aeroporto". "A análise é feita pela equipe técnica considerando curvas de ruído calculadas por meio de modelagem computacional e aprovadas pela Anac. O Aeroporto de Congonhas encontra-se na fase de renovação da LO - Licença de Operação, cuja solicitação está em análise na Cetesb."
O Decea reforçou, em nota, que é de competência da Anac regular sobre ruído aeronáutico e disse que instituiu a Comissão de Gerenciamento de Ruído Aeronáutico (CGRA), responsável por centralizar e gerenciar todas as demandas relativas a este assunto. Ainda assim, moradores ouvidos pela reportagem se dizem insatisfeitos com os resultados gerados após as reuniões da comissão. No Ministério Público Federal (MPF), há um procedimento em andamento sobre as queixas de ruído, mas sob sigilo.
Concessão do Aeroporto de Congonhas mobiliza debate
Na avaliação de representantes de moradores ouvidos pelo Estadão, o projeto de ampliação de rotas do aeroporto - cujo planejamento, informou o Decea, durou cerca de três anos - teria sido feito "às pressas" por conta da concessão do aeroporto. Eles não se dizem contra aos investimentos da iniciativa privada, mas cobram maior aprofundamento, antes do leilão, dos impactos gerados nos bairros afetados pelas mudanças nos voos.
Considerado um dos ativos mais valiosos da União no Estado, o Aeroporto de Congonhas foi incluído na sétima rodada de concessões aeroportuárias da Agência Nacional da Aviação Civil (Anac), que prevê alcançar ao menos R$ 7,3 bilhões em investimentos nos 15 aeroportos incluídos no pacote - o Campo de Marte também está na lista. Como mostrou o Estadão no último mês, a concessão do Aeroporto de Congonhas entrou na esteira das eleições de São Paulo e tem mobilizado inclusive o debate político.
Procurada para comentar a alta de queixas de barulho em meio ao processo de concessão, o Ministério da Infraestrutura informou que tem como princípio a ampla discussão com todos os atores envolvidos nos processos de concessão e desestatização no setor de infraestrutura de transportes. "Isso se reflete na ampla participação social na fase de consulta pública de diversos ativos da União, como foi o caso do processo da 7ª rodada."
"Ressaltamos que não há que se falar em pressa na realização dessa etapa de concessões nem dos procedimentos inerentes a ela. O Ministério da Infraestrutura tem cumprido rigorosamente o cronograma de concessões estabelecido ainda no início da atual gestão, em 2019, quando foi anunciado que a 7ª rodada seria realizada no ano de 2022, com os 15 aeroportos que integram essa etapa (incluindo o de Congonhas)."