Corte realiza julgamento nesta quarta-feira e pode definir flexibilidade da lista de tratamentos e remédios coberta pelos planos. Grupos de pacientes planejam protesto e operadoras defendem 'previsibilidade'
Rubens Anater
O Superior Tribunal de Justiça (STJ) julga nesta quarta-feira, 23, recursos que podem restringir a cobertura de planos de saúde. Grupos de mães de crianças com deficiência, entre outros grupos de pacientes, temem a interrupção de tratamentos caros concedidos por via judicial e planejam um protesto na sede da Corte em Brasília. Já as operadoras dos planos reivindicam segurança jurídica para viabilizar financeiramente a manutenção do serviço.
O julgamento desta quarta-feira pode definir se a lista de tratamentos e remédios coberta pelos planos, que é estabelecida pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), é exemplificativa ou taxativa. O rol de procedimentos estabelece a cobertura assistencial obrigatória a ser fornecida pelos planos. Consumidores reclamam que essa lista não é suficiente, e que muitos tratamentos necessários acabam não sendo contemplados.
Entenda a diferença entre a interpretação exemplificativa e a interpretação taxativa
Na interpretação exemplificativa, a lista de procedimentos cobertos pelos planos contém alguns itens, mas as operadoras também devem atender outros que tenham as mesmas finalidades, se houver justificativa clínica do médico responsável. Isso tem feito com que famílias recorram à Justiça para que o direito à cobertura pelo plano seja garantido.
No caso da interpretação taxativa, os itens descritos no rol seriam os únicos que poderiam ser exigidos aos planos. Com isso, o pedido para tratamentos equivalentes poderia ser negado, sem chance de reconhecimento pela via judicial.
A indefinição apresentada pelo STJ entre as diferentes interpretações motivou a abertura dos embargos de divergência que serão julgados na quarta-feira. Esses recursos têm como objetivo uniformizar a jurisprudência interna do Tribunal.
Assim, a característica taxativa ou exemplificativa do rol da ANS deverá ser definida pela Corte, gerando uma jurisprudência sólida que deve afetar todas as próximas decisões sobre o tema, inclusive as que já emitiram liminares para obrigar os planos a estenderem sua cobertura.
Contatado pelo Estadão, o ministro do STJ, Luis Felipe Salomão, relator do caso em julgamento na quarta, disse que, por lei, não pode se pronunciar sobre o tema. Em julgamento da 4ª turma do STJ, em 2019, ele votou a favor da taxatividade do rol, argumentando que considerá-lo exemplificativo restringiria a livre concorrência das operadoras de planos de saúde e dificultaria "o acesso à saúde suplementar às camadas mais necessitadas e vulneráveis da população".
No entanto, ele sinalizou que podem haver excepcionalidades, como no caso de medicamentos relacionados ao tratamento do câncer ou medicamentos administrados durante internação hospitalar. No voto, declarou que podem existir situações pontuais em que o Juízo determine o fornecimento de certa cobertura que constate ser efetivamente imprescindível.
Por outro lado, em 2021, a 3ª turma do STJ teve um posicionamento distinto, considerando o rol como exemplificativo. No recurso, relatado pela ministra Nancy Andrighi, destaca-se: "A qualificação do rol de procedimentos e eventos em saúde como de natureza taxativa demanda do consumidor um conhecimento que ele, por sua condição de vulnerabilidade, não possui nem pode ser obrigado a possuir".
Só em 2019 ocorreram 112.253 demandas judiciais de direito do consumidor envolvendo planos de saúde. Além dos pedidos judiciais por tratamentos ou procedimentos não incluídos no rol da ANS, esse número envolve também outras demandas, como quebras de contrato, redução de tarifas, etc. No total, o Brasil tem cerca de 48 milhões de beneficiários dos planos de saúde.
Idec defende lista como 'referência mínima de cobertura'
Para a coordenadora do programa de Saúde do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), Ana Carolina Navarrete, a definição do rol da ANS como taxativo vai "gerar um risco muito grande de os planos de saúde negarem coberturas necessárias e de efetividade comprovada".
Segundo ela, os planos de saúde tendem a ter uma interpretação muito restritiva do rol, no que ela chama de uma "uma prática abusiva das empresas ao negar cobertura" quando o tratamento é mais custoso.
Além disso, Navarrete afirma que o próprio rol não se baseia apenas na efetividade dos tratamentos para os pacientes, mas também na lucratividade das empresas. "Ou seja, não entra qualquer tecnologia que seja boa ou custo-efetiva. Ela também não pode ser muito cara. E isso coloca o rol em uma situação de equilíbrio muito difícil."
A coordenadora também considera como inválido o argumento de desequilíbrio econômico da parte dos planos de saúde. "Esse entendimento é assim há pelo menos 10 anos e isso não gerou colapso no setor. Pelo contrário, quando vemos as informações das empresas nesse período, houve crescimento econômico."
Além disso, segundo uma das advogadas do caso em julgamento, Caroline Salerno, pessoas com deficiência estarão entre as principais impactadas pela decisão, caso o STJ vote a favor da taxatividade do rol da ANS.
"Além de abordar a questão do rol, (o julgamento) deveria ser analisado na perspectiva da proteção à pessoa com deficiência, nesse microssistema jurídico que é mais sensível e vulnerável", alega.
Além das pessoas com deficiência, o impacto é considerável entre pacientes e famílias de pacientes com doenças graves, como câncer ou epilepsia.
Operadoras de planos de saúde pedem por rol taxativo
A Associação Brasileira de Planos de Saúde (Abramge) afirmou que a consideração do rol da ANS como exemplificativo é desafiadora para as operadoras.
Para a associação, essa situação gera um ambiente de judicialização que impossibilita a previsibilidade na atuação das operadoras. "Formular o preço de um produto sem limite de cobertura, que compreenda todo e qualquer procedimento, medicamento e tratamento existente, pode tornar inviável o acesso a um plano de saúde e colocar a continuidade da saúde suplementar no Brasil em xeque."
A Unimed, parte de uma das ações em análise pelo STJ, declarou: "A definição clara das coberturas obrigatórias, de forma taxativa, garante segurança jurídica aos contratos e evidencia direitos e obrigações na relação entre os beneficiários e as operadoras".
Sem a previsibilidade de um rol taxativo, a operadora alega que "não há como calcular adequadamente os recursos necessários para garantir todas as coberturas a que os planos terão de fazer frente, o que tende ao desequilíbrio econômico-financeiro dos contratos já vigentes e ao aumento dos preços para novos contratos".
A nota ainda indica que o rol taxativo é importante para proteger a segurança dos pacientes.
O professor de Direito Administrativo da Uerj Gustavo Binenbojm também defende um rol taxativo. Para ele, a judicialização dos casos é uma "falsa solução para o problema", porque cria um desequilíbrio para os planos, favorece apenas as pessoas que vão à Justiça e acarreta em um reflexo nos preços.
"Me parece que a melhor solução seria uma que respeite o equilíbrio dos valores da segurança jurídica e do respeito aos contratos de um lado, e do acesso à saúde de ponta do outro lado", afirma.
Assim, ele considera que casos como os que vão para a Justiça hoje deveriam ser objeto de consideração por parte da ANS, durante a atualização do rol de procedimentos, que deve acontecer no máximo a cada seis meses.
Mães planejam protesto em frente ao STJ
Dezenas de mães planejam se acorrentar em frente ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) nesta quarta-feira, 23, para pressionar a Corte. A manifestação é mobilizada pelo Instituto Lagarta Vira Pupa, uma rede de apoio para mães, famílias e pessoas com deficiência.
Andréa Werner, fundadora do Instituto, afirma que o objetivo é evitar que a Corte determine que o rol é taxativo e que os planos de saúde só são obrigados a atender procedimentos ou tratamentos previstos por ele. "Pessoas com doenças crônicas, diabetes e deficiências, além de idosos, vão ser os mais afetados", considera a ativista.
Uma das manifestantes que estarão no protesto é a advogada Vanessa Ziotti, mãe de trigêmeos dentro do espectro autista e diretora jurídica do Instituto Lagarta Vira Pupa.
Vanessa conta que seus filhos foram diagnosticados com autismo em 2019, quando eles tinham apenas um ano e meio. Segundo ela, as terapias recomendadas pelos médicos chegariam a custar R$180 mil para os três e não estavam totalmente previstas no rol da ANS.
Assim, ela entrou na Justiça e conquistou uma liminar que permitiu que os filhos pudessem receber o tratamento nestes últimos três anos.
Antes disso, os filhos não vocalizavam, quase não dormiam, não suportavam lugares muito cheios e não comiam adequadamente. Estavam todos abaixo do peso e não interagiam com outras pessoas nem mesmo entre si.
Mas as terapias começaram a mudar a situação. Hoje, eles já se comunicam de formas alternativas, se alimentam, dormem e até podem frequentar a escola. "Tem um dos meus trigêmeos que eu não conhecia o sorriso dele. Ele só passou a sorrir depois que começou a fazer a terapia", relata Vanessa.
Rita Carvana, mãe de um rapaz de 15 anos, diagnosticado com epilepsia aos 12 e que só conseguiu controlar suas crises convulsivas com cannabis medicinal, conta que a terapia não estava prevista no rol da ANS.
Antes de pedir na Justiça a cobertura pelo plano de saúde, Rita gastava cerca de R$ 4 mil mensais apenas com esse medicamento. "Você paga um plano de saúde a vida inteira - o meu filho é dependente do meu marido, que paga o plano desde 1999 - aí quando você mais precisa, ele não cobre o que você precisa."
Essa também é a realidade de Bruna Petrini. Seu filho de 3 anos foi diagnosticado com Síndrome de Down e autismo, e tanto o neuropediatra quanto o pediatra pediram técnicas não previstas no rol da ANS que custariam cerca de R$ 10 mil na rede privada.
Ela conta que chegou a depender apenas do que o convênio cobria, mas o filho não teve qualquer evolução. Foi só depois que entrou na justiça e conquistou as terapias necessárias que pôde perceber o desenvolvimento.
Bruna, que atualmente não trabalha para poder cuidar do filho, depende apenas da renda do marido, então tem medo da revogação da liminar. "A gente não teria condições de arcar com todas as terapias."