Contudo, na avaliação de religiosos, muitos bispos deverão se aproximar das posições de Francisco a favor da abertura na Igreja às minorias e do debate em torno de temas fundamentais, como meio ambiente.
Gilberto Nascimento
As nomeações de bispos no Brasil desde o início do pontificado do papa Francisco mantiveram o perfil conservador do episcopado.
Dos 121 bispos nomeados por Francisco no país até 22 de dezembro do ano passado, apenas 20 podem ser considerados "progressistas", segundo avaliação de religiosos católicos alinhados à Teologia da Libertação - doutrina identificada com a "opção preferencial pelos pobres", difundida a partir dos anos 1970 principalmente na América Latina.
O argentino Jorge Mario Bergoglio, o papa Francisco, foi eleito no conclave de 13 de março de 2013. Os sinais de mudanças no episcopado brasileiro nesses nove anos de seu pontificado são considerados "muito tímidos" e "acanhados", de acordo com religiosos que simpatizam com suas ideias.
A expectativa da chamada ala "progressista" católica era de que os "novos ventos" do pontificado de Francisco - considerado um papa mais aberto - fossem absorvidos pelos bispos brasileiros e, assim, trouxessem "um novo rosto à Igreja no Brasil".
Na lista de nomeados por Francisco nos últimos anos, porém, há uma predominância de bispos "conservadores", ligados às questões internas da Igreja e sem envolvimento com temas sociais.
O teólogo Manoel Godoy, professor da Faculdade de Filosofia e Teologia Jesuíta (FAJE) e do Centro Loyola de Espiritualidade, lembra que o papa Francisco não conseguiu mudar os mecanismos de nomeação de bispos.
Godoy explica que, embora o papa exerça influência - e dê a palavra final -, o processo de escolha continua a ser comandado pelo núncio apostólico (representante do Vaticano) em cada país.
Na opinião do teólogo, esse processo de escolha no Brasil deveria ser comandado pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).
"Enquanto essa metodologia de escolha estiver nas mãos da nunciatura, e da forma como os novos são indicados, se não for alterada, não haverá mudanças. Não mudou a nunciatura nem mudou o método de escolha. Não é só a mudança do nome do núncio. O processo tem de passar para a CNBB, que deveria ser responsável pela escolha de seus membros. Não pela nunciatura, por alguém que vem de fora e representa o Estado do Vaticano. O núncio é o embaixador do Vaticano", avalia Godoy.
Com base na história da Igreja, o teólogo observa que, no princípio, o papa São Celestino, do século 5°, defendeu que nenhum bispo deveria ser imposto.
"E nesse sentido, há uma reivindicação crescente na Igreja para que se amplie a participação nos processos de nomeações de párocos e bispos", afirma.
A nomeação do novo núncio no Brasil, Giambattista Diquatro, italiano de Bologna, em agosto de 2020, deu continuidade à manutenção de conservadores nesse cargo. E foi comemorada pela ala à direita da Igreja. Diquatro é visto como mais alinhado ao governo do presidente Jair Bolsonaro do que à CNBB.
Ao apresentar suas credenciais a Bolsonaro - cinco meses depois de sua indicação -, o núncio compareceu ao Palácio do Planalto usando vestimentas tradicionais e recebeu críticas de outros setores da Igreja.
Houve uma mudança de rumos nas nomeações de bispos em todo o mundo a partir de 1985.
Uma guinada conservadora no pontificado do papa João Paulo 2° atingiu diretamente o Brasil. A predominância na nomeação de conservadores teve sequência com o papa Bento 16 e segue agora na mesma linha, quase inalterada.
À época de João Paulo 2°, o cardeal Joseph Ratzinger - então prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé -, em uma entrevista em que fazia um balanço dos 20 anos anteriores da Igreja, desde o encerramento do Concílio Vaticano 2º (1965), afirmou:
"Nos primeiros anos do pós-Concílio, o candidato ao episcopado parecia ser um sacerdote que fosse, antes de tudo, aberto ao mundo (...) depois da virada de 1968, compreendeu-se que aquela característica única não era suficiente (...) percebeu-se que se faziam necessários bispos abertos, mas ao mesmo temo, dispostos a opor-se ao mundo e a suas tendências negativas".
Nessa perspectiva, começou-se a procurar quem era capaz de "opor-se ao mundo", explica o teólogo Manoel Godoy. Assim, foi mudando o perfil do episcopado brasileiro.
Não teríamos mais nomes como o de dom Paulo Evaristo Arns (então arcebispo de São Paulo); dom Hélder Câmara (arcebispo de Recife), dom Aloísio Lorscheider (arcebispo de Fortaleza); dom Cândido Padim, (bispo de Bauru); dom José Maria Pires (arcebispo de João Pessoa); dom Ivo Lorscheiter (bispo de Santa Maria - RS) - todos já falecidos -, e outros tidos como identificados "com uma Igreja aberta ao diálogo com o mundo e não em posição de combate ao mundo".
Entre os novos bispos de Francisco, os 20 que são apontados pela ala "progressista" da Igreja como "mais abertos" está dom Arnaldo Carvalheiro, de Itapeva (SP), nomeado em 2016.
Ele chamou a atenção em um vídeo divulgado nas redes sociais em outubro do ano passado, por um duro e enfático discurso em solidariedade ao arcebispo de Aparecida, dom Orlando Brandes, à CNBB, e ao papa Francisco.
Orlando Brandes havia se tornado alvo de ataques de bolsonaristas nas redes sociais após defender em um sermão, no dia da padroeira do Brasil (12 de outubro), um país "sem corrupção, pobreza, mentiras e armas". O arcebispo disse que não podíamos ter "uma Pátria armada".
Dom Arnaldo Carvalheiro propôs aos que criticavam Brandes e "falam besteira sobre a Campanha da Fraternidade ou que acusam falsamente, caluniam, xingam e ofendem bispos, padres e leigos" que saíssem imediatamente de sua igreja durante a missa.
"Quero que quem se diz católico de verdade, tome uma posição, permaneça na igreja e cante junto. Mas se você está falando mal da Igreja, da Campanha da Fraternidade, ao dizer que está a favor de abortista, o que é fake news... Se você está aqui nesse momento, me acompanha nas redes sociais, e está de acordo que o papa é vagabundo, que o papa é safado, que a CNBB é o câncer da igreja e que dom Orlando usa a batina para manipular o povo de Deus e fazer politicagem, levante-se agora e vá embora. Não quero você aqui. Levante-se agora, vá embora e não volte. Vá procurar outra igreja... Você já não está em comunhão. Já não pertence mais a esta igreja".
O 'centro' católico
Não se imagina um conjunto do episcopado tão aguerrido assim. Contudo, na avaliação de religiosos, muitos bispos tidos mesmo como "moderados" ou até "conservadores" deverão se aproximar das posições de Francisco, favorável hoje a uma abertura maior na Igreja às chamadas minorias - mulheres, homossexuais - e também padres casados, entre outros grupos -, além de incentivar o debate em torno de temas fundamentais hoje, como o meio ambiente.
Embora se destaque na Igreja Católica a tradicional divisão entre os chamados "conservadores" e "progressistas", existe um enorme agrupamento de religiosos - predominante, na realidade - de bispos considerados tradicionais", nem à direita ou à esquerda necessariamente, que tendem a seguir o rumo do pontificado atual.
Se eram considerados conservadores à época de João Paulo 2° e Bento 16, hoje tendem a acompanhar as posições "mais abertas" de Francisco.
Os "tradicionais" atuariam como uma espécie de "centro" na Igreja Católica, se mantendo próximos ao poder e caminhando para onde seguem os novos ventos.
"Dom Odílio Scherer (arcebispo de São Paulo), por exemplo, é apontado como conservador, mas tem surpreendido com suas posições na CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) e hoje é um ponto de equilíbrio, uma espécie de freio, entre progressistas e conservadores na Igreja. Assim, se sai dessa dicotomia", diz o agente pastoral Toninho Kalunga, membro do Cotolengo, entidade filantrópica ligada à Congregação de São Luiz Orione, em Cotia (SP), e um dos articuladores de grupos de leigos, padres e religiosos vinculados à Teologia da Libertação em todo o país.
Entusiasta das comunidades eclesiais de base católica (Cebs), Kalunga vê mudanças positivas na Igreja. "Os avanços são notáveis", comemora.
"Francisco está buscando mudança na estrutura da Igreja, que o Concílio Vaticano 2º já vinha pedindo. Temos um clero conservador nesses últimos dez anos, mas ele está conseguindo fazer com que o espírito do Concílio Vaticano 2º seja vivido e reafirmado", diz o padre Padre Siro da Silva Chaves, da Ordem dos Passionistas, vigário em Itaboraí (RJ), que está se transferindo para uma missão em Buenos Aires, justamente onde nasceu Francisco.
Ivenize Santinon, professora na Faculdade de Teologia da PUC-Campinas (SP), vê sinais de avanço na Igreja, mas mantém reservas.
"Ele (papa) tem essa ânsia (por mudanças), mas não consegue ir muito adiante. A máquina da Igreja é de certa forma pesada e estruturada por muita gente que antecedeu o seu pontificado. E Francisco não tem tanto tempo para fazer grandes mudanças. Então, ele está fazendo o que dá. Mas é superarriscado, é ousado. Está deixando escrito aquilo que pensa. Ele faz sinalizações e manda recado de uma forma simples sobre algo que enxerga e sabe ser muito difícil mudar", diz a teóloga.
Em alguns pontos, ele deveria ter avançado mais, diz Santinon. "Na questão das mulheres, por exemplo, ele demorou. (...) No mundo acadêmico, na formação, na estrutura e nos espaços de decisão da Igreja, nós não fomos contempladas. E, desde o começo, ele sempre colocou que isso é importante na Igreja Católica. Mas não conseguiu mexer", analisa a teóloga.
Os padres hoje no Brasil são conservadores, em sua maioria, como mostra a a pesquisa "O novo rosto do clero - Perfil dos padres novos no Brasil", coordenada pelo professor de teologia da PUC-PR Agenor Brighenti, e lançada em livro no ano passado.
O episcopado brasileiro segue na mesma linha. Mudanças nos rumos da Igreja Católica nunca ocorrem num período menor que 20 anos, avaliam os estudiosos de religião.