Felipe Peixoto afirma que profissionais eram orientados a receitar medicamentos sem eficácia; operadora é alvo do Ministério Público
Lôrrane Mendonça
O médico generalista Felipe Peixoto relata, em entrevista ao Estadão, ter sofrido pressão da operadora de planos de saúde Hapvida para receitar o chamado 'kit covid', composto por medicamentos sem eficácia ou contraindicados para tratar pessoas infectadas pelo novo coronavírus, como a hidroxicloroquina. Segundo ele, havia uma imposição da operadora.
"Ameaçaram demitir qualquer médico que ultrapassasse a negativa de prescrever a droga mais de duas vezes consecutivas", afirmou Peixoto, que deixou a Hapvida.
A rede é alvo de inquérito do Ministério Público do Ceará, Estado onde fica a sede da operadora, e foi investigada também pelo MP-SP. Em abril, o Programa Estadual de Proteção e Defesa do Consumidor, do MP cearense, notificou a Hapvida a pagar multa de R$ 468,3 mil por impor, "indistintamente a todos os médicos conveniados", que receitassem medicamentos como cloroquina e hidroxicloroquina no tratamento de pacientes com covid.
As ameaças de demissão estão registradas em conversas no aplicativo WhatsApp, afirma Peixoto. Em uma delas, à qual o Estadão teve acesso, um superintendente da unidade onde Peixoto atuava cita um "ranking" de médicos que se recusam a prescrever hidroxicloroquina mais de duas vezes. "A orientação é desligar os colegas que entrarem nesse ranking 2x", diz o texto.
"Aqui no hapfor mesmo, já tivemos, infelizmente, que desligar uma colega por esse motivo". A justificativa da operadora, de acordo com as mensagens, era de que a prescrição do "kit covid" havia sido adotada como um "protocolo" da instituição.
"Os colegas (médicos) achavam um verdadeiro absurdo, alguns se calavam por medo de perder o emprego, muitos trabalhavam exclusivamente para a rede Hapvida, então ,boa parte do orçamento ficaria comprometido. No meu caso, eu não trabalhava apenas para eles, mas esse abuso tornava inviável continuar lá", diz Peixoto, que denunciou a operadora no Ministério Público pela primeira vez há um ano.
Segundo Felipe Peixoto, a Hapvida fazia propaganda do "kit covid", o que causou confusão entre pacientes. De acordo com ele, alguns chegavam à consulta "exigindo" as medicações. "Essa promessa comprometeu, sim. Alguns pacientes já chegavam exigindo a receita médica para pegar o tratamento na farmácia do hospital (que no início era pago e depois passou a ser distribuído gratuitamente)", conta o médico.
Peixoto afirma que procurou as autoridades locais, mas diz que apenas o Ministério Público do Estado resolveu iniciar a investigação. Segundo ele, a operadora continuou receitando o medicamento até março deste ano, conforme relatos de colegas que continuaram trabalhando em hospital da rede após o seu desligamento. "Eles também nunca me procuraram (após a denúncia), adotaram uma postura de simplesmente fingir que isso nunca aconteceu", diz.
A Hapvida também é investigada por receitar o kit covid mesmo sem aplicar o teste para diagnóstico dos pacientes. Um inquérito foi aberto pelo Ministério Público do Rio Grande do Norte, a partir da denúncia de um paciente. Ele contou aos promotores que os médicos receitaram cloroquina e ivermectina antes de terem certeza de que estava infectado. O paciente ainda disse que precisou pagar pelo teste em uma clínica privada. O caso, denunciado em julho, segue sob investigação. O MP já oficiou a operadora para esclarecimentos.
Assim como a Prevent Senior, a Hapvida também foi notificada pelo Instituto de Defesa do Consumidor em razão do uso da cloroquina e outros medicamentos sem eficácia comprovada contra a covid-19. No caso da Hapvida, o Idec identificou indícios de suposta pressão sobre médicos da rede para prescrever o kit covid em Goiás, Pernambuco, Pará e Ceará.
O Conselho Regional de Medicina de São Paulo também apura a suposta pressão sobre médicos em um hospital da Hapvida em Ribeirão Preto. Os próprios médicos denunciaram ter sido coagidos para receitar o kit covid aos pacientes. Em uma investigação sobre o mesmo hospital, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) fez diligências, no dia 27 de setembro, na Hapvida para apurar o caso, também a partir da denúncia de médicos.
Defesa
Em nota, a Hapvida diz que, no ano passado, ainda havia um entendimento de que a hidroxicloroquina poderia trazer benefícios aos pacientes. "No melhor intuito de oferecer todas as possibilidades aos nossos usuários, houve uma adesão relevante da nossa rede, mas a adoção da hidroxicloroquina foi sendo reduzida de forma constante e acentuada. Hoje, a instituição não sugere o uso desse medicamento, por não haver comprovação científica de sua efetividade". A nota diz, ainda, que "desde o primeiro momento, a Hapvida defende e promove a vacinação, o uso de máscaras e as práticas de distanciamento social".
A rede afirma que foram abertos mais de mil leitos de UTI e contratados mais de 6 mil profissionais de saúde. Houve a compra de mais de 532 respiradores, além do aluguel de prédios para a ampliação dos espaços de internação e a aquisição de equipamentos de proteção em grande quantidade para reforçar a segurança dos profissionais. /COLABOROU LUIZ VASSALLO